quinta-feira, dezembro 6

Escreva! - I


Devido ao número de leitores nossos que gostam ou gostariam de escrever literatura, por hobby ou com sonhos de tornar-se um escritor ‘profissional’, resolvemos inaugurar esta coluna com algumas dicas. As edições serão progressivas, então, 'comecemos pelo começo':

Parte 1->Level Ultra-Basic Writting:
1-Leia.
Bons escritores começam com bons leitores. Há mais de 2.000 anos de cultura literária por aí, não adianta começar sem referências, seria reinventar a roda. Não precisa ser um leitor exemplar, conhecer de Anne Rice a Proust, mas reconhecer o que é ‘um bom livro’ ajuda a guiar-se na hora de escrever um.
2-Escreva.
Dica mais-do-que-óbvia. Escreva por diversão e sobre tudo, principalmente no começo. É como dirigir, a experiência cria a confiança. 
3-Reescreva.
Escrever algo que lhe agrada é fácil, difícil é agradar aos outros. Está bom? Poderia ser melhor? Então reescreva. Reescrever consome mais tempo e é mais importante que o impulso inicial, quando você somente ‘rascunha’ o texto. Na primeira vez que um texto é escrito este não passa de uma nota do que pode ser, é o trabalho em cima dele que o torna boa literatura.
4-Aproveite!
Se você enfrentou o passo 3 horas e horas seguidas, perdeu um pouco de sono, deixou de trabalhar ou estudar por causa de uma ideia, é mais do que justo esperar um feedback. Em primeiro lugar o feedback próprio, saiba reconhecer a qualidade do que fez (ou o quanto aquele exercício o ajudou a progredir), depois procure amigos que sejam leitores, eles lhe passarão impressões muito importantes para seu crescimento e o incentivarão a continuar se o desânimo bater.


Esta é a primeira parte da série, logo voltamos com mais.
;-)

terça-feira, dezembro 4

Blecaute



Imagine que voltando de uma excursão você encontre o mundo paralisado, e os únicos seres humanos sobre a terra sejam você e os seus amigos. As outras pessoas não sumiram nem morreram, apenas pararam em um momento e nunca chegaram ao seguinte, petrificados como estátuas.

Esse é o início do livro “Blecaute” de Marcelo Rubens Paiva. Apesar de ser classificado como “literatura jovem” por alguns, principalmente por tratar de três adolescentes, o livro é bastante original. No lugar de entrar em clichês de mistérios e fantasia como a maioria dos livros desse gênero faz, ele explora os problemas existenciais e sentimentais dos personagens envolvidos.

O livro foi lançado em 1986, cinco anos após o best-seller de estreia “Feliz ano velho” em que Rubens Paiva conta sua experiência ao ficar tetraplégico.

Para aqueles que procuram um livro “pós-apocalíptico” sem muitas fantasias, apenas um livro bem escrito com personagens interessantes, vale a pena conferir.

Download PDF: Aqui.

quinta-feira, novembro 29

H.C. Andersen




Hans Christian Andersen, escritor dinamarquês do sec. XIX, é até hoje lembrado como um dos mais importantes escritores infanto-juvenis. Várias de suas histórias, como o Soldadinho de chumbo, a Pequena Sereia e A Pequena vendedora de fósforos, tornaram-se clássicos.

Conheceu Dickens, o qual parece não ter apreciado sua companhia, viveu amores platônicos, por mulheres e por homens, e morreu em consequência de uma queda da cama.

Andersen nasceu em uma família pobre, filho de um sapateiro e uma lavadeira. Alguns estudiosos argumentam que talvez fosse filho bastardo da realeza, mas não há muitas evidências dessa história. Quando criança encenava peças com marionetes feitas por seu pai, chegando a decorar alguns textos de Shakespeare.

Adulto, não teve sorte com as mulheres, viveu amores não correspondidos e recebeu recusas de casamento. Do outro lado do jogo a sorte também não lhe foi muito melhor, seus sentimentos por outros homens também não tiveram frutos. Escreveu certa vez para Edvard Collin, filho de seu patrocinador: "Eu definho por você como uma bela garota... Meus sentimentos por você são aqueles de uma mulher. A feminilidade de minha natureza e nossa amizade devem permanecer um mistério", mas a tentativa também foi malfadada.

Encontrou-se com Charles Dickens, de quem era um grande admirador, por duas vezes, em 1847 e em 1857. A segunda vez foi uma visita à casa do autor que estendeu-se e durou cinco semanas, para desgosto do anfitrião. Ainda que Andersen tenha apreciado a visita, nunca entendeu por que suas cartas pararam de ser respondidas.

Com 67 anos caiu da cama e sua saúde deteriorou-se, vindo a falecer três anos depois em 1875.

O dia internacional do livro infanto-juvenil acontece em 2 de Abril, dia de seu aniversário, e em 1956 foi criado o prêmio de literatura infantil que leva seu nome, considerado o 'Pequeno nobel de literatura'.




terça-feira, novembro 27

O sonho de um homem ridículo




Este conto de 1877 é um dos mais conhecidos de Dostoiévski, referido inúmeras vezes pela sua profundidade, marca conhecida do autor.

O personagem principal, encontrando-se em um estado de completa indiferença por tudo resolve acabar com sua vida. Caminhando durante o que seria sua ultima noite, depara-se com uma garotinha que lhe pede ajuda. Esta cena basta para que sua alma se perturbe e ele mergulhe em um sonho.

Os elementos fantásticos do conto são uma alegoria, o próprio personagem diz não saber se os acontecimentos foram reais ou não, e nem se importar com isso. O que Dostoiévski quer dizer não está implícito, nunca foi esse o tipo de literatura que fez, seu significado está no leitor sentir e identificar-se com a situação do personagem.

Escrito no auge do autor, precedendo em alguns anos a publicação de 'Irmãos Karamázov', o 'Sonho de um homem ridículo' é um exemplo da riqueza da literatura russa no final do sec. XIX, que conta com outros grandes nomes como Tolstoi e Tchekov.

Para quem interessar há uma belíssima animação de Alexandr Petrov do conto.

PDF Aqui.



 Animação por Aleksandr Petrov



segunda-feira, novembro 26

Delson Borges



"Plateia não tem mais acento
Que todos fiquem de pé.

Neste mundo louco, onde a lei de mercado supera a da gravidade, é frequente que alguns autores bem patrocinados tenham mais destaque do que o merecido e outros de verdadeiro talento fiquem à margem.

Quantos Paulo Lemiski não temos por aí, ignorados pelas editoras? Outros tantos ‘marginais’, cuja única arma é sua verve?

Delson Borges é um desses. Caso tivesse nascido alguns anos mais cedo poderia estar ao lado de nomes como Cacaso, Ana Cristina César, Chacal, e outros tantos da famosa ‘Geração mimeógrafo’. Mas o mimeógrafo foi-se embora junto com seu delicioso cheiro de álcool, e a nova geração é a do xerox, um dos meios pelo qual sua obra é distribuída.

"só dou 
a cara a tapa 
se fores tu 
a estapeá-la

Sua poesia é simples e fluída, marcada por inteligentes jogos de palavra. Seu livro ‘Pô Emas e Tex Tículos’ é uma perfeita amostra de poesia sem papas, calmamente cozida em fogo brando.

"se caí 
é por que o chão 
pediu um abraço

De resto, os versos falam por si.
‘Pô Emas e Tex Tículos’ pode ser adquirido no agBook.

Delson Borges


sexta-feira, novembro 23

Alta ajuda


E se no lugar de tentarmos resolver nossos problemas com livros oportunistas da moda usássemos da alta literatura para nos ajudar?

O quadro 'Alta ajuda' do programa Entrelinhas tem esse objetivo, recomendando a personagens cujos problemas pessoais (ou nem tanto) estão recorrentes na mídia, livros que lhes poderiam ser 'terapêuticos'.

Abaixo, Luiz Felipe Pondé recomenda algumas obras a John Galliano, estilista demitido da grife Dior após hostilizar turistas com frases anti-semitas e declarar adorar Adolf Hitler.



O Entrelinhas, antes um programa individual, agora está presente como um quadro do programa Metrópolis, que vai ao ar Domingo 21hs na TV Cultura. Todo o arquivo do programa está disponível na página da emissora.

Veja mais em:

http://tvcultura.cmais.com.br/entrelinhas

terça-feira, novembro 20

Quem não quer um Nobel?



Boris Pasternak e Jean Paul Sartre foram os únicos dois escritores a recusar o prêmio Nobel até hoje, e o fizeram por motivos bem diferentes: o primeiro por opressão, o segundo por liberdade.

Pasternak, escritor russo conhecido principalmente pela obra 'Dr. Jivago', posteriormente adaptada para o cinema em 1965, já havia sido indicado para o prêmio diversas outras vezes, entretanto a premiação em 1958 não pôde ser comemorada pelo autor. Sua nomeação, sendo ele um artista visto com ressalvas pelo governo soviético, foi considerada um ataque ao regime russo. Dr. Jivago foi criticado como uma obra 'individualista' e até 'anti-soviética' na época, e os anos mais rígidos do regime não podiam aceitar publicamente a nomeação do escritor. Informado que se fosse receber o prêmio, não poderia retornar à Russia, Pasternak recusou-o.

Sete anos depois a Fundação Nobel teve de aceitar outra recusa, Jean Paul Sartre, o filosofo da liberdade, deu-se a liberdade de negar o prêmio. Disse que nunca aceitava honrarias oficiais, aceitá-las, para ele, seria reconhecer as instituições que as concediam. Mas outros motivos para o filósofo não se impressionar com o prêmio também podem ser levados em conta: sua mãe era prima de primeiro grau de um Nobel da paz: Albert Schweitzer, ganhador da medalha no ano de 1952.

Hoje em dia é costume da fundação consultar os indicados previamente para saber se aceitariam o prêmio, afinal, não custa nada garantir.

 Sartre
Pasternak

segunda-feira, novembro 19

Pelé e Nelson






Hoje comemora-se o aniversário do milésimo gol de Pelé, executado em 19/11/1969.

Mas muito antes que Pelé se tornasse um imortal, houve um garoto de 17 anos que era uma promessa, e um cronista de jornal, um tal de Nelson Rodrigues, que soube reconhecer o talento do garoto e publicou sua impressão:




“Depois do jogo América x Santos seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura que o meu confrade Laurence chama de ‘o Domingos da Guia do ataque’. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: – 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Pois bem: – verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se ‘Imperador Jones’, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: – ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certeza eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau."


Nelson Rodrigues - Março 1958



Tolstói e Gandhi




Curiosidade:

O pacifista Mahatma Gandhi e o escritor Liev Tolstói chegaram a trocar cartas diversas vezes.

Gostaria de saber mais sobre a relação entre o místico indiano e o místico russo?
Parte de sua correspondência está disponível em inglês:


http://en.wikisource.org/wiki/Correspondence_between_Tolstoy_and_Gandhi









Sono-I





Esta série mostrará diversas atividades cotidianas retratadas na literatura. Como primeiro tema: o Sono.

Este trecho inaugura a monumental obra de Marcel Proust 'Em busca do tempo perdido', uma das séries de romances de maior importância do século XX, abrindo portas para um relato de vida completo, a terminar sete livros depois...



"Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: 'Vou dormir'. E, meia hora depois, a idéia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia por alguns segundos ao meu despertar; não ofendia a razão, mas pesava como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa."


No caminho de Swann - Marcel Proust - 1913



Minha mãe se matou sem dizer adeus





“A vida é ruim; eu sei. Mas ainda não vou cortar a teia da própria vida feito
 ela minha mãe: o vocábulo é minha âncora; aqui desta mesa-mirante observo
o anoitecer dos outros para esquecer-me do próprio crepúsculo.

É domingo. Chove choro. Tenho medo.”




Evandro afonso ferreira é um escritor do abismo. E nos relata com este livro a experiência extrema da proximidade da morte, medo, e  tristeza.

Com uma voz rouca e melancólica, o personagem descreve o mundo ao redor misturado a lembranças de sua mãe, louca, bêbada e suicida, que deixou a vida sem despedir-se. Sentado na mesa de um café, o tempo não passa, a tempestade que bate nas janelas prenuncia um dilúvio, e a morte aos poucos se aproxima. E apesar de reconhecer o quanto a vida é ruim, há o medo de morrer, do vazio, e por isso o personagem escreve, como maneira de segurar-se a este mundo. Somente o parco amor recebido de sua mãe e a amizade da amiga-filósofa formam uma magra luz neste universo cinza.

A capa com uma mancha de sangue reflete o quanto o autor está neste livro. Evandro mostra-se um desses escritores mais que sinceros, que fazem do papel um espelho da alma. A escrita é marcada pela repetição, e por neologismos como “perplexo-deslumbrado” ou “mãe-moleque”, que o autor cria na necessidade de recursos para descrever um universo tão pessoal.

“Minha mãe se matou sem dizer adeus” é o monólogo de um homem marcado pela decrepitude e tristeza existencial. Mais ainda, um homem que faz de seu discurso, o ultimo elo com a vida. “Às vezes penso que nasci apenas para escrever; não nasci para viver; escondo-me atrás das palavras”.

Saudades do Braga...


Há mais de 20 anos perdemos um dos maiores cronistas que o Brasil já teve. Ou até 'O Maior' cronista - e não estaria arriscando demais com esse palpite.

Rubem Braga foi cronista por excelência, não publicando fora deste gênero mais que algumas poucas poesias. Suas narrativas curtas são sempre leves e poéticas, mas nunca superficiais.


O homem que traduziu Antoine de Saint-Exupéry (o Pequeno Príncepe, Terra dos Homens, etc) e até mesmo, diz ele, habitou o mesmo apartamento que Proust (Em busca do tempo perdido) em Paris, recebeu um legado de amor à vida e à sua poesia que fica evidente em seus textos.

Como nenhuma descrição vale mais que um exemplo, segue aqui uma de suas crônicas:

O PADEIRO

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. Enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não, senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como o pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.

------------------------Rubem Braga, Rio, maio, 1956.

Inauguração

Ainda que os livros saiam de moda, a literatura nunca o fará.


Na falta de Papel,
Vai o Post.